quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Triste vitória -

(baseado num antigo texto de meu irmão Douglas Carvalho, que muito marcou minha infância)

Todos os dias a gente passava por ali.
O Pedro, com seu corpo curvado, as pernas longas demais para a idade, os joelhos saltados numa magreza assustadora.
O Bola, que como o próprio apelido diz, formava uma grande esfera rosada, de bochechas brilhantes e cabelos claros, cujas mãos lembravam dois pãezinhos franceses, onde já não sei viam os espaços entre um dedo e o outro.
Tino, o líder da trupe. Quase um ano mais velho que todos nós. De jaqueta de couro, topete escovado e all star vermelho. O terror da rua, o mais respeitado da quinta série. O mais bonito.
Eu...nem gordo, nem magro. Altura mediana. Simpático.
Passávamos com calma por aquela calçada, silenciosamente. A emoção em avistar o casarão semi-abandonado, a expectativa em notar o balanço da cadeira na varanda, e a imensa nuvem negra de um cigarro fedorento que anunciavam a desejada presença. Sim! Ele estava lá de novo. Esteve lá todas as tardes desde que nos mudamos, quando tínhamos todos 9 anos (exceto Tino que já havia chegado nos sonhados dois dígitos).
O mesmo ritual ridículo. Sentar na cadeira. Ascender o cigarro. Beijar a aliança em memória da esposa falecida Balançar, balançar, balançar....até cochilar. Isso nos irritava. E era nessa hora, no cochilo, que a gente costumava agir.
Nos armávamos com as maiores pedras que achávamos no caminho entre a escola e a casa do velho. Guardávamos todas nos bolsos, e preparávamos nossas táticas de guerra em silencio. Sem trocar uma palavra. Ritualmente. Todos os dias, durante 3 anos.
Não me pergunte da emoção. Hoje, com mais de 30, também me parece tudo estupidez. Mas estar lá era inexplicável. Ouvi-lo aos berros enquanto corríamos. Observa-lo juntar os cacos de mais uma janela partida pela nossa mira infalível...tudo isso nos causava uma excitação, que, arrisco dizer, hoje comparo com as do sexo.
O Bola sempre achava que íamos morrer. Que seríamos pegos pela polícia...mas nada nunca aconteceu. Sempre deu certo, até aquele dia...
Passamos por lá de novo, já armados. O sol ardia. O Bola suava. O Tino chutava coisas no chão. Eu preparava minhas táticas, seguindo-os apenas por inércia. Sem me concentrar no caminho que fazíamos.
Paramos. Achei que estávamos em frente ao casarão. Mas não... estávamos um pouco antes de onde era costume.
Uma movimentação considerável no grande portão de frente pra varanda.
Nem balanço, nem fumaça.
Pára-médicos.
Sirene.
Luto.
Nunca havia pensado na possibilidade.
Um corpo era retirado, envolto em um lençol branco, na maca suspensa por dois homens fortes.
A mão velha pendia ao lado, descoberta. A aliança refletia a luz do sol, e cegava quem a olhasse diretamente.
Ele estava morto.
Observamos a movimentação de longe.
O silêncio permaneceu por alguns minutos, enquanto digeríamos tudo...foi quebrado apenas pelo grito de alegria do Pedro.
- Vencemos!
Sim! Era isso. Havíamos vencido. O inimigo havia sucumbido. Doze anos nas costas e uma vitória brilhante contra um...um...contra ele!
Corremos pela rua juntos. Gritávamos como se nossos times fossem campeões.
Ahhh....a sensação de glória. Nunca me esqueço dela.
Fomos pra casa nos estapeando, em sinal de felicidade. Empurrando um contra o outro. Atravessando a rua sem olhar pros lados.
Enquanto todos caminhavam para suas casas, eu e Tino continuamos juntos até nossos portões geminados.
- Parabéns, soldado.
- A você também, capitão.
Ele se virou. Caminhou de costas pra mim.
Fiquei a sós, com o sol das três torrando meus neurônios.
Só pensava na satisfação.
Abri a porta. Minha mãe preparava café na cozinha. O cheiro tomava conta da casa. Tirei a blusa da escola.
Estava pesada....
Esvaziei os bolsos...cinco pedras foram postas no canto do quarto, próximo a porta.
As observei por um minuto, e pensei no fato de nunca mais ter de usá-las...
Pensei nos amigos. No que faríamos daqui pra frente na saída da escola.

Pensei na possibilidade de que talvez, assim como eu, todos eles estivessem chorando.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Pobreza artística

Pobre do artista que vive a imitar a vida
Entre surtos e psicoses, olhares e vozes
Caçando beleza onde não se vê mais
Buscando aquarela nas pálidas páginas dos jornais

Dali pra cá, ele acha um tanto de arte
Daqui pra lá, no inverso, ninguém enxerga nada por toda parte

Pobre do artista que canta o cotidiano
Busca essência onde só há humano
Faz trovas de um mundo vazio,
poesias de rua, ao meio fio

Pobre do artista que aposta nas cores
Que insiste em rimar e cantarolar os amores
Que consegue expressar e poetizar as dores
Que suga beleza do que é só horrores

Da vida que imita a arte, pouca coisa restou
Pobre do artista que por essa poesia se apaixonou

Mas os devaneios desses versos ele já sabe de cor
E dentre todos esses devaneios a vida é o maior