sábado, 16 de fevereiro de 2008

O Tempo


Valéria acordou cedo. Os números brilhantes no aparelho de DVD indicavam 05:15.
Pelos movimentos da cortina na janela do quarto constatou que um forte vento rasgava o ar daquela segunda feira.
Com mais preguiça do que o normal, e com a certeza de que nunca sentira tanto sono na vida, ela se levantou, e esfregando os olhos calçou os chinelos.

O tempo lá fora não estava bom...
“Preciso ir ao banco”, pensou ela enquanto tentava identificar sua escova de dente dentre tantas tranqueiras no armário do banheiro. “Mas preciso estudar... acho q não vai dar tempo”, concluiu o pensamento.

Saiu de casa com todas as blusas que pode encontrar. “Fico tão mais gorda no inverno... culpa do tempo”. Passou pela catraca do metrô empurrada pelas outras pessoas apressadas que pareciam ter mais urgência que ela em chegar em seus destinos. Todas, observou distraída Valéria, não paravam de consultar seus relógios de pulso.

No vagão, um japonês estranho sentou-se ao seu lado. Aparentava ter mais de 80 anos, e lia uma edição antiga de um jornal oriental. Pendurado no pescoço, uma carteira de identidade amarelada com os dizeres “IMIGRANTE” em vermelho, indicava seu nome: “Yoshihiro Takeshi Kondo”. Abaixo do nome, a fotografia de um jovem bonito, galante “que deve ter dado muito trabalho”, pensou ela. “A senhorita pode me avisar quando chegarmos à Liberdade?”, perguntou ele a Valéria com um sotaque quase impossível de se traduzir.“Daqui a duas estações” disse ela sem animo depois de conferir o horário em seu celular.
Com uma cara de espanto, o velho japonês segurou o braço de Valéria e perguntou novamente. “A Liberdade? Só duas estações para encontrá-la?”. Com cara de espanto maior que a que ele havia feito, Valéria acenou que sim com a cabeça.
“E você desce lá, né?” Perguntou ele novamente.
“Não, não! Eu desço algumas depois”.

Com um olhar de decepção, o velho japonês se levantou e posicionou-se com dificuldades perto da porta de saída.

Deixou no banco do metrô o jornal que estava lendo. Valéria, por pura curiosidade, pegou-o para olhar.

Na primeira linha, entre muitos “rabiscos de japonês” havia uma frase escrita de lápis em português: ”Bomba atômica – O dia em que o Sol desabou”.
Duas linhas abaixo da manchete traduzida, mais anotações em português: ”(...) carbonizados, como tantos outros, Miaka Kondo e Suehiro Kondo (...) muitos japoneses tentaram a liberdade (...) ficará para a história como avanço tecnológico, e para nós como memória de terror que o tempo não pode apagar”.

No cabeçalho, ela conferiu a data de publicação: 10/08/1945, e ao lado os dizeres “otenki = tempo”.
Olhou para o relógio novamente, mas não para conferir as horas. “Tempo”, pensou ela “Anacrônico, mas tempo”. Olhou para as pessoas empacotadas de roupas do lado de fora do vagão. “Tempo... climático, mas tempo”. Olhou para as marcas amareladas do jornal e para data no topo da pagina. “Tempo”.

Pensou na Liberdade...no bairro. E pensou na escravidão “Como dependemos do tempo”.

Enrolou o jornal com cuidado, colocou-o no meio de seus materiais e desceu do vagão. Passou para a outra plataforma, e pegou o metrô de volta. “Estação Liberdade” indicou a voz mecânica. Posicionou-se para descer e pensou: “será que consigo devolvê-lo? Espero que ainda de tempo”.

Cíntia Carvalho