quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Azul



Mais um toque, um retoque.
A maquiagem branca lhe dominava a face, acentuando o contorno da boca: Bela, sensual.
Parada diante do espelho iluminado ela se olhava com um quê de vaidade e zelo. Era quase um ritual; era quase religioso.
Cada risco traçado pelo lápis negro desenhava um segundo a menos no tempo que lhe restava.

Não gostava de fato.
Não se orgulhava daquilo enquanto se preparava.
O olho tremia, pronto para revelar uma lágrima.
Segurou.
Tantas não rolaram, não seria essa...

Levantou-se devagar e caminhou até o grande armário posicionado às suas costas.
Abriu-o com cuidado, evitando ruídos. Quebrar o silencio lhe daria a impressão de que havia mais alguém no quarto, testemunhando o que ela mesma não gostaria de presenciar.

A mão imediatamente lançou-se para dentro do guarda roupas e arrancou do cabide um belo vestido vermelho. - “Hoje é o dia do vermelho”
Era rotineiro. A vaidade que outrora a manteve horas escolhendo o modelo, agora dava lugar ao costume e a agilidade, como um veterano de guerra que não mais hesita em puxar o gatilho.
Era isso.
Cada escolha era um tiro com o cano apontado pra própria garganta.
A cada bala, uma vítima e um assassino.
Sempre ela nos dois papéis.

Vestiu-se com pressa, dando conta de que se perdera em seus pensamentos.

Uma última olhada no espelho para encarar sua imagem e conferir a maquiagem.
- “Um pouco borrada”.
Levou os dedos de unhas longas até o olho e limpou a borda. “O que eles pensariam se me vissem assim?”. Inalou com gosto o que restava do seu bento pó branco, como se mandasse para dentro uma farta dose de coragem.

Fora dali, as vozes excitadas conversavam em tom alto.
Risadas, piadas. Diversão para uns, sacrifício para outros.
Dinheiro.

Calçou enfim os sapatos altos e retirou-se do camarim.

Ela conhecia o caminho mesmo com todas as luzes apagadas.
Era rotineiro...
Pernas.
Boca.
Seios.
Aplausos.

Hora de voltar para casa. Hora de encarar os filhos e inventar uma nova historia sobre seu "honroso trabalho no museu".
Mas antes disso ela passou a ferro um outro vestido.

Amanhã seria o dia do azul.