Em dez anos de carreira Lúcia nunca havia escrito em primeira pessoa.
Os anseios, os dramas e até mesmo as alegrias ela conseguia de forma quase inerte transferir a um personagem delicadamente criado pela sua nobre imaginação de escritora.
Naquele dia, porém, ela resolveu falar de si.
Postou-se diante do computador com certo nervosismo.
As mãos suavam discretamente, acusando a tensão acentuada pelos olhos.
Sentiu-se em um confessionário, mas não se deixou abater.
Digitou as primeiras palavras: “Hoje eu...”
Recuou.
Recomeçou: “Por hora eu...”
Parou.
“Eu!”
...
“Eu me julgo certa do que digo e escrevo. Eu me sinto dona de cada vírgula e desenho palavras como quem troca de roupas.
Eu me perco em universos criados por mim mesma, e dou a cada texto um “eu” diferente, um “eu” adequado.
Mas hoje resolvi falar do meu eu. Daquele que talvez por covardia nunca tenha expressado em nenhuma obra. Daquele que por simples infantilidade ou por doce meninice eu guarde apenas para mim. Como um brinquedo tão legal que você se recusa a dividir com amigos. È melhor mantê-lo na caixa garantindo sua durabilidade, do que usar de suas funções sujeitando-o ao estrago.
É isso.
O medo de estragar o “eu” me fez usar sempre “eles”.
Hoje, no entanto, aos 43 anos de idade, me sinto na obrigação de dar continuidade a esse texto, tantas vezes iniciado, mas sempre (sempre!) abortado.
Esperei ansiosa pelo momento em que me encorajaria a falar de mim.
Mas agora, diante desse cursor que pisca incansavelmente ao aguardo do próximo digito, eu concluo de forma triste que não sei quem realmente sou.
Talvez por isso, por tanto tempo, eu tenha dedicado minha criatividade a terceiros, que carinhosamente eu chamo de personagens.
Frustrados?
Eu mais.
Falar de si é explorar o mais terrível dos territórios, e diante disso, prefiro considerar-me um território inexplorável.”
Ao terminar, de forma cautelosa, ela revisou cada palavra.
Sim! Era exatamente o que queria dizer. Justificou a todos os motivos pelos quais nunca antes havia escrito em primeira pessoa.
Território inexplorável....
Leu-o novamente.
Sentiu o fardo de se declarar, de se afirmar.
Com as mãos trêmulas envolveu o texto em aspas, seguindo-se de uma vírgula e os dizeres “afirmou ela”.
Pronto.
Livrou-se novamente da responsabilidade.
O texto sobre Lúcia terá de aguardar uma próxima oportunidade.
Ou, quem sabe, só um pouco de coragem.